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Fazer loginHá mais de quarenta anos, Gilberto Gil lançava o álbum Refavela (1977). O disco, pertencente à trilogia dos Re — Refazenda (1975), Refavela (1977) e Realce (1979) —, é considerado uma das obras mais marcantes da música brasileira no século XX.
Tão marcante que, para comemorar o aniversário de quatro décadas do álbum, o documentário Refavela 40, produzido por Bem Gil, foi lançado no ano passado.
O valor de Refavela para a música brasileira dos anos 70 tem vários motivos. Vem de uma história anterior ao disco e pode ser explicado pelas várias influências que atravessam a obra de Gil. E não parou em 1977: o disco é icônico, também, por ter inspirado músicos e movimentos que viriam a seguir.
Claro que a gente não ia deixar de te contar essa história. O disco Refavela é o assunto de hoje e vamos te explicar um pouco de como (e porque) o álbum se tornou tudo isso. Vem ver!
Em 1977, Gilberto Gil foi participar do FESTAC’77, um festival de arte e cultura negra em Lagos, na Nigéria. Segundo o artista, lá havia uma construção parecida com uma Vila Olímpica, feita para abrigar os mais de 50 mil negros vindos de todo o mundo.
Eram casas feitas de material barato e com escassez de recursos básicos, o que o lembrou Salvador: uma tentativa do governo de tirar as pessoas da favela e fornecer residências teoricamente mais dignas, mas, no fim, é apenas outra periferia. Daí o termo “refavela”.
Se o Refazenda foi inspirado pelo ambiente rural e as raízes nordestinas de Gil, Refavela é urbano e inspirado pelas raízes africanas do artista. É uma reflexão sobre o negro e a cidade e de que forma a tradição negra pode se instalar no urbano, sobrevivendo por meio da cultura.
Curiosamente, apesar de ser considerado uma obra super icônica hoje, o álbum não teve uma recepção unânime na época. Lá na década de 70, os críticos ficaram bastante divididos: alguns esperavam uma posição política mais enérgica da parte de Gilberto Gil.
Para entender as influências e referências do álbum, vamos falar dos dois aspectos principais: letra e música. Acompanha com a gente:
Refavela é resultado de uma mescla de vários gêneros afro, afro-americanos e por aí vai. Uma mistureba e tanto!
Mas o interessante é que esses gêneros já dialogavam entre si. Por exemplo, todos eles costumam ser bastante rítmicos, o que vem tradicionalmente dos rituais religiosos da África. Assim, a percussão ocupa um papel bastante importante e mesmo os instrumentos melódicos e harmônicos costumam ter um ritmo bastante marcado.
Gil queria usar esse álbum como uma reflexão sobre como a cultura negra sobrevive no ambiente urbano. Para isso, mesclou vários gêneros que já são, em si, uma forma de sobrevivência dessa cultura: vira e mexe reutilizam e reapropriam uns aos outros, acrescentando novas sonoridades.
Segue o raciocínio: o jazz surgiu nos EUA, no início do século XX. O funk americano se derivou do jazz, na década de 1960. Eis que, em 1970 na Nigéria, esses gêneros são mesclados com a música iorubá (tradicionalíssima na região). O resultado é o chamado afrobeat.
Na Nigéria, essa mistura de gêneros ganhou um trato novo, com o acréscimo da percussão africana e dos estilos vocais variados. O afrobeat se tornou marcado pelas big bands, ou seja, um grupo grande de músicos tocando instrumentos variados, com uma percussão super energética e muito espaço pra improvisação (o que talvez seja uma herança do jazz).
Além de ser uma expressão musical, o afrobeat serviu fortemente como forma de protesto. O artista Fela Kuti, considerado o principal criador do gênero, ficou bem conhecido por usar sua música para falar ativamente em nome dos direitos humanos e contra o governo militar. Afrika’70, banda de Kuti, também foi uma grande expoente do gênero.
Enquanto movimento, o afrobeat foi bastante influente não só para a música, mas para a cultura e para a política de modo geral. A música de Fela Kuti, principalmente, reverbera no mundo até hoje: Beyoncé, por exemplo, usa samples e interpolações de Kuti em suas músicas, e Criolo, que cita e se inspira em Fela desde o álbum Nó Na Orelha (2011).
Essa cena cultural negra estava a pleno vapor na Nigéria quando Gil chegou. Não é à toa que o compositor ficou inspirado, né?
Então, ele fez a sua parte: pegou todas essas expressões musicais e as acrescentou às suas. Musicalmente, as influências de Gilberto Gil estavam em todos os lugares. Na busca por suas raízes africanas, o compositor flertou com estilos negros de várias partes do mundo: o funk americano, a jùjú music africana, o reggae (com muita influência de Bob Marley) e os próprios blocos de Carnaval africanos.
E aí, Gil fez um afrobeat brasileiro, trazendo referências aos blocos Ilê Ayê (que virou nome de música), Filhos de Gandhi e outros movimentos.
Uma referência que também vale mencionar é o Movimento Black Rio, um dos mais criativos e instigantes fenômenos da cultura brasileira.
Inspirado no funk e na black music norte-americana, foi ele que nos deu Tim Maia, Sandra de Sá e a própria banda Black Rio — vários nomes que abrasileiraram o funk estadunidense, que tinham uma presença muito forte nos bailes do Rio nos anos 70.
Deu pra entender como esse álbum é rico em influências? Nessa reflexão sobre suas origens, o artista observou a música negra de todos os cantos e trouxe para a sua realidade.
Simbolicamente, uma das faixas do álbum é Samba do Avião, composta por Tom Jobim. Nada mais brasileiro que Tom Jobim, não é? Pois é: veio Gilberto Gil e deu uma cara bem mais afro pra música.
Aos poucos, faixa a faixa, Gil foi deixando sua marca na história da música do país. E essa marca era negra.
Em Refavela, as letras de Gil transbordam negritude. E não são tantas as metáforas: o compositor é didático sobre o que quer dizer.
Em Ilê Ayê, por exemplo, Gil não quer deixar dúvidas:
Branco, se você soubesse o valor que o preto tem
Tu tomava um banho de piche, branco, e ficava preto também
E não te ensino a minha malandragem
Nem tão pouco minha filosofia, porquê?
Quem dá luz a cego é bengala branca em Santa Luzia
E se há referências variadas na sonoridade do álbum, claro que há inúmeras nas letras. Uma coisa que dá pra notar desde o início, por exemplo, é que Gil alterna entre o português e várias expressões de origem africana.
E, pensa bem: por mais que algumas culturas afro-brasileiras tenham se preservado, o próprio português é resultado de uma colonização branca.
Já em Babá Alapalá, por exemplo, Gil reflete sobre seus ancestrais em um tributo claro às religiões de matriz africana:
O filho perguntou pro pai:
Onde é que tá o meu avô? O meu avô, onde é que tá?
O pai perguntou pro avô:
Onde é que tá meu bisavô? Meu bisavô, onde é que tá?
Avô perguntou bisavô:
Onde é que tá tataravô? Tataravô, onde é que tá?
Tataravô, bisavô, avô
Pai Xangô, Aganju
Viva egum, babá Alapalá!
Nessa letra, há a referência ao Culto Aos Egunguns, um culto masculino que veio ao Brasil com negros escravizados. A música se baseia na primeira ida do compositor a um terreiro de Candomblé, em Salvador.
Mas essa não é a única interpretação possível — quando Gil reflete sobre sua ancestralidade, existem outras questões envolvidas. Por exemplo, é comum encontrar famílias negras que não possuem muitos registros fotográficos ou de qualquer tipo sobre sua família, devido à marginalização e à desigualdade social. O único lugar em que esses ancestrais permanecem é, muitas vezes, nas tradições (como a religião).
De modo geral, o esforço de Gil nas letras parece ser interno e externo: ao mesmo tempo em que ele mesmo reflete sobre de onde vem e a comunidade a que pertence, também quer afirmar a força da cultura negra.
E é esse o grande mérito das letras de Refavela. Na mesma medida em que Gil se declara para Sandra, ele nos ensina o que é balafon (um instrumento africano), acompanha o bloco dos Filhos de Gandhi e vive o aqui e agora. Como tudo isso diz respeito a ele, Gil passa por esses assuntos com naturalidade, contando pra gente de onde ele vem e para onde vai.
Como já mencionamos, Refavela não foi uma unanimidade entre críticos. Apesar disso, o tempo pode ter sido um grande aliado do disco, que foi aos poucos deixando o seu legado — musical e simbólico.
Curiosamente, o próprio Gil entregou o álbum sem estar completamente satisfeito. Muito do que o incomodou, na verdade, foi a mixagem. Apesar disso, seu filho Bem Gil foi extremamente marcado por esse álbum e quis fazer do aniversário de 40 anos do disco uma ocasião especial.
Em fevereiro de 2019, o show Refavela 40 foi feito no Circo Voador, no Rio de Janeiro. Gilberto Gil e sua família talentosíssima subiram ao palco para homenagear o disco, acompanhados de Moreno Veloso e das famílias de Martinho da Vila e de Itamar Assumpção. A apresentação foi tão simbólica e forte que rendeu o documentário Refavela 40, também idealizado por Bem Gil.
Essa reunião de ícones da MPB, sua família e a música que corre em suas veias é apenas uma amostra de como todo o trabalho de Gilberto Gil ecoa no imaginário brasileiro. Não é só o Refavela: a música de Gil envelhece, mas não fica velha.
A história de Refavela é só uma das várias que compõem a trajetória do compositor. Hoje, ele já foi ministro e é bisavô, mas não parou: nos tempos vagos, canta com a família, compõe até para o Grupo Corpo e tem a tranquilidade de quem já deixou sua marca na música brasileira.
Em uma entrevista para Folhapress, Gilberto Gil admitiu que não pensa que veio ao mundo para deixar um legado. Claro que não, ele só estava fazendo o que ama. O legado inigualável é só consequência, né?
Por isso mesmo, vale ler um pouco sobre a vida do músico e sua carreira. Por isso mesmo, vale a pena conhecer a biografia de Gilberto Gil pra saber tudo sobre sua vida e sua carreira!
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