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Refavela: como o álbum de Gil revolucionou a música brasileira

Álbuns · Por Dora Guerra

10 de Abril de 2020, às 12:00

Há mais de quarenta anos, Gilberto Gil lançava o álbum Refavela (1977). O disco, pertencente à trilogia dos Re — Refazenda (1975), Refavela (1977) e Realce (1979) —, é considerado uma das obras mais marcantes da música brasileira no século XX.

Tão marcante que, para comemorar o aniversário de quatro décadas do álbum, o documentário Refavela 40, produzido por Bem Gil, foi lançado no ano passado. 

Capa do álbum Refavela, de Gilberto Gil
Capa do álbum Refavela / Créditos: Divulgação

O valor de Refavela para a música brasileira dos anos 70 tem vários motivos. Vem de uma história anterior ao disco e pode ser explicado pelas várias influências que atravessam a obra de Gil. E não parou em 1977: o disco é icônico, também, por ter inspirado músicos e movimentos que viriam a seguir

Claro que a gente não ia deixar de te contar essa história. O disco Refavela é o assunto de hoje e vamos te explicar um pouco de como (e porque) o álbum se tornou tudo isso. Vem ver!

A história do disco Refavela

Em 1977, Gilberto Gil foi participar do FESTAC’77, um festival de arte e cultura negra em Lagos, na Nigéria. Segundo o artista, lá havia uma construção parecida com uma Vila Olímpica, feita para abrigar os mais de 50 mil negros vindos de todo o mundo.

Gilberto Gil no 2º Festac
Trecho de jornal informando que Gilberto Gil participaria do FESTAC / Créditos: Reprodução (internet)

Eram casas feitas de material barato e com escassez de recursos básicos, o que o lembrou Salvador: uma tentativa do governo de tirar as pessoas da favela e fornecer residências teoricamente mais dignas, mas, no fim, é apenas outra periferia. Daí o termo “refavela”.

Se o Refazenda foi inspirado pelo ambiente rural e as raízes nordestinas de Gil, Refavela é urbano e inspirado pelas raízes africanas do artista. É uma reflexão sobre o negro e a cidade e de que forma a tradição negra pode se instalar no urbano, sobrevivendo por meio da cultura.

Gilberto Gil
Créditos: Divulgação

Curiosamente, apesar de ser considerado uma obra super icônica hoje, o álbum não teve uma recepção unânime na época. Lá na década de 70, os críticos ficaram bastante divididos: alguns esperavam uma posição política mais enérgica da parte de Gilberto Gil. 

O que faz o Refavela ser tão icônico?

Para entender as influências e referências do álbum, vamos falar dos dois aspectos principais: letra e música. Acompanha com a gente:

O som de Refavela

Refavela é resultado de uma mescla de vários gêneros afro, afro-americanos e por aí vai. Uma mistureba e tanto!

Mas o interessante é que esses gêneros já dialogavam entre si. Por exemplo, todos eles costumam ser bastante rítmicos, o que vem tradicionalmente dos rituais religiosos da África. Assim, a percussão ocupa um papel bastante importante e mesmo os instrumentos melódicos e harmônicos costumam ter um ritmo bastante marcado.

Gil queria usar esse álbum como uma reflexão sobre como a cultura negra sobrevive no ambiente urbano. Para isso, mesclou vários gêneros que já são, em si, uma forma de sobrevivência dessa cultura: vira e mexe reutilizam e reapropriam uns aos outros, acrescentando novas sonoridades. 

Segue o raciocínio: o jazz surgiu nos EUA, no início do século XX. O funk americano se derivou do jazz, na década de 1960. Eis que, em 1970 na Nigéria, esses gêneros são mesclados com a música iorubá (tradicionalíssima na região). O resultado é o chamado afrobeat.

O que Gil encontrou na Nigéria: o afrobeat

Na Nigéria, essa mistura de gêneros ganhou um trato novo, com o acréscimo da percussão africana e dos estilos vocais variados. O afrobeat se tornou marcado pelas big bands, ou seja, um grupo grande de músicos tocando instrumentos variados, com uma percussão super energética e muito espaço pra improvisação (o que talvez seja uma herança do jazz). 

Além de ser uma expressão musical, o afrobeat serviu fortemente como forma de protesto. O artista Fela Kuti, considerado o principal criador do gênero, ficou bem conhecido por usar sua música para falar ativamente em nome dos direitos humanos e contra o governo militar. Afrika’70, banda de Kuti, também foi uma grande expoente do gênero. 

Enquanto movimento, o afrobeat foi bastante influente não só para a música, mas para a cultura e para a política de modo geral. A música de Fela Kuti, principalmente, reverbera no mundo até hoje: Beyoncé, por exemplo, usa samples e interpolações de Kuti em suas músicas, e Criolo, que cita e se inspira em Fela desde o álbum Nó Na Orelha (2011).

Um afrobeat misturado

Essa cena cultural negra estava a pleno vapor na Nigéria quando Gil chegou. Não é à toa que o compositor ficou inspirado, né?

Festac77 em Lagos, na Nigéria
Créditos: Reprodução (internet)

Então, ele fez a sua parte: pegou todas essas expressões musicais e as acrescentou às suas. Musicalmente, as influências de Gilberto Gil estavam em todos os lugares. Na busca por suas raízes africanas, o compositor flertou com estilos negros de várias partes do mundo: o funk americano, a jùjú music africana, o reggae (com muita influência de Bob Marley) e os próprios blocos de Carnaval africanos. 

E aí, Gil fez um afrobeat brasileiro, trazendo referências aos blocos Ilê Ayê (que virou nome de música), Filhos de Gandhi e outros movimentos.

Uma referência que também vale mencionar é o Movimento Black Rio, um dos mais criativos e instigantes fenômenos da cultura brasileira.

Inspirado no funk e na black music norte-americana, foi ele que nos deu Tim Maia, Sandra de Sá e a própria banda Black Rio — vários nomes que abrasileiraram o funk estadunidense, que tinham uma presença muito forte nos bailes do Rio nos anos 70. 

Deu pra entender como esse álbum é rico em influências? Nessa reflexão sobre suas origens, o artista observou a música negra de todos os cantos e trouxe para a sua realidade.

Simbolicamente, uma das faixas do álbum é Samba do Avião, composta por Tom Jobim. Nada mais brasileiro que Tom Jobim, não é? Pois é: veio Gilberto Gil e deu uma cara bem mais afro pra música.

Aos poucos, faixa a faixa, Gil foi deixando sua marca na história da música do país. E essa marca era negra.

As letras do Refavela

Em Refavela, as letras de Gil transbordam negritude. E não são tantas as metáforas: o compositor é didático sobre o que quer dizer

Em Ilê Ayê, por exemplo, Gil não quer deixar dúvidas:

Branco, se você soubesse o valor que o preto tem
Tu tomava um banho de piche, branco, e ficava preto também
E não te ensino a minha malandragem
Nem tão pouco minha filosofia, porquê?
Quem dá luz a cego é bengala branca em Santa Luzia

E se há referências variadas na sonoridade do álbum, claro que há inúmeras nas letras. Uma coisa que dá pra notar desde o início, por exemplo, é que Gil alterna entre o português e várias expressões de origem africana.

E, pensa bem: por mais que algumas culturas afro-brasileiras tenham se preservado, o próprio português é resultado de uma colonização branca.

Já em Babá Alapalá, por exemplo, Gil reflete sobre seus ancestrais em um tributo claro às religiões de matriz africana:

O filho perguntou pro pai:
Onde é que tá o meu avô? O meu avô, onde é que tá?
O pai perguntou pro avô:
Onde é que tá meu bisavô? Meu bisavô, onde é que tá?
Avô perguntou bisavô:
Onde é que tá tataravô? Tataravô, onde é que tá?
Tataravô, bisavô, avô
Pai Xangô, Aganju
Viva egum, babá Alapalá!

Nessa letra, há a referência ao Culto Aos Egunguns, um culto masculino que veio ao Brasil com negros escravizados. A música se baseia na primeira ida do compositor a um terreiro de Candomblé, em Salvador.

Mas essa não é a única interpretação possível — quando Gil reflete sobre sua ancestralidade, existem outras questões envolvidas. Por exemplo, é comum encontrar famílias negras que não possuem muitos registros fotográficos ou de qualquer tipo sobre sua família, devido à marginalização e à desigualdade social. O único lugar em que esses ancestrais permanecem é, muitas vezes, nas tradições (como a religião).

De modo geral, o esforço de Gil nas letras parece ser interno e externo: ao mesmo tempo em que ele mesmo reflete sobre de onde vem e a comunidade a que pertence, também quer afirmar a força da cultura negra

E é esse o grande mérito das letras de Refavela. Na mesma medida em que Gil se declara para Sandra, ele nos ensina o que é balafon (um instrumento africano), acompanha o bloco dos Filhos de Gandhi e vive o aqui e agora. Como tudo isso diz respeito a ele, Gil passa por esses assuntos com naturalidade, contando pra gente de onde ele vem e para onde vai.

O legado do álbum

Como já mencionamos, Refavela não foi uma unanimidade entre críticos. Apesar disso, o tempo pode ter sido um grande aliado do disco, que foi aos poucos deixando o seu legado — musical e simbólico.

Curiosamente, o próprio Gil entregou o álbum sem estar completamente satisfeito. Muito do que o incomodou, na verdade, foi a mixagem. Apesar disso, seu filho Bem Gil foi extremamente marcado por esse álbum e quis fazer do aniversário de 40 anos do disco uma ocasião especial.

Em fevereiro de 2019, o show Refavela 40 foi feito no Circo Voador, no Rio de Janeiro. Gilberto Gil e sua família talentosíssima subiram ao palco para homenagear o disco, acompanhados de Moreno Veloso e das famílias de Martinho da Vila e de Itamar Assumpção. A apresentação foi tão simbólica e forte que rendeu o documentário Refavela 40, também idealizado por Bem Gil. 

Show Refavela 40
Show que, posteriormente, foi transformado no documentário Refavela 40 / Créditos: Divulgação

Essa reunião de ícones da MPB, sua família e a música que corre em suas veias é apenas uma amostra de como todo o trabalho de Gilberto Gil ecoa no imaginário brasileiro. Não é só o Refavela: a música de Gil envelhece, mas não fica velha. 

A biografia completa de Gil

A história de Refavela é só uma das várias que compõem a trajetória do compositor. Hoje, ele já foi ministro e é bisavô, mas não parou: nos tempos vagos, canta com a família, compõe até para o Grupo Corpo e tem a tranquilidade de quem já deixou sua marca na música brasileira.

Gilberto Gil e família
Gilberto Gil e família / Créditos: Divulgação

Em uma entrevista para Folhapress, Gilberto Gil admitiu que não pensa que veio ao mundo para deixar um legado. Claro que não, ele só estava fazendo o que ama. O legado inigualável é só consequência, né? 

Por isso mesmo, vale ler um pouco sobre a vida do músico e sua carreira. Por isso mesmo, vale a pena conhecer a biografia de Gilberto Gil pra saber tudo sobre sua vida e sua carreira!