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Apenas Um Rapaz Latino Americano: uma análise da música de Belchior

Analisando letras · Por Renata Arruda

30 de Abril de 2021, às 19:00

Um dos maiores sucessos de Belchior, Apenas Um Rapaz Latino Americano, se tornou não só um grande hit, como também deu origem a uma espécie de apelido do cantor.

Belchior
Créditos: Divulgação

A música fala sobre o sentimento de ser um homem humilde em um país latino durante uma ditadura militar. Irônico, o músico não deixa de fazer críticas aos tropicalistas, mais especificamente a Caetano Veloso.

Quer entender melhor essa treta? Então confira nossa análise de Apenas Um Rapaz Latino Americano! Investigamos todas as referências presentes na letra e explicamos o que realmente aconteceu entre os dois artistas.

Apenas Um Rapaz Latino Americano: análise da música

Lançada em 1976, a música foi escrita durante um período turbulento, em que os Estados Unidos haviam aumentado sua influência na América Latina, apoiando a tomada de poder pelos militares na região. 

Além do Brasil, países como Chile, Argentina, Uruguai, Bolívia, Peru e Paraguai viviam sob regimes totalitários.

Por aqui, a ditadura militar enxergava os artistas como um dos seus principais opositores. A situação era tensa para eles, que tinham suas obras censuradas e muitas vezes podiam ser espancados, presos, torturados e exilados.

Artistas Ditadura
Créditos: Divulgação

Assim, Belchior expressa em sua letra o sentimento de ser um jovem vindo de uma cidade do interior do Ceará que tenta ganhar a vida no eixo Rio-São Paulo, mas logo se dá conta de que a realidade é muito mais dura do que ele esperava.

Eu sou apenas um rapaz latino-americano
Sem dinheiro no banco, sem parentes importantes
E vindo do interior

Solidariedade latino-americana

Em uma entrevista de 1983, Belchior falou sobre a ideia por trás da composição:

América Latina
Créditos: Divulgação

[Fala de] uma pessoa na esquina do mundo, uma pessoa do Terceiro Mundo, uma pessoa na expectativa. Uma pessoa dependente economicamente do restante do mundo, mas com uma capacidade enorme de desdobramento vital, de resistência, de rebeldia do espírito, de novidade, de transformação, de poder novo.

Então, assumir o fato de sermos latino-americanos, sendo brasileiros, sendo cearenses, sendo de Sobral, é justamente participar da fraternidade latino-americana.

Nada é divino, nada é maravilhoso

Mas trago de cabeça uma canção do rádio
Em que um antigo compositor baiano me dizia
Tudo é divino, tudo é maravilhoso

Na estrofe acima, Belchior faz uma referência a Caetano Veloso e aos tropicalistas, uma das muitas que aparecem em suas músicas. Neste caso, ele cita a canção Divino Maravilhoso, lançada em 1969.

A intenção é fazer uma oposição ao que é cantado pelo baiano, ao encarar a realidade das grandes capitais do sudeste sob a influência de uma ditadura militar. Belchior lembra dos versos que diziam que tudo é divino, tudo é maravilhoso e arremata: 

Tenho ouvido muitos discos, conversado com pessoas
Caminhado meu caminho, papo, som, dentro da noite
E não tenho um amigo sequer que ‘inda acredite nisso, não
Tudo muda! E com toda razão

cantores tropicália
Jorge Ben, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Os Mutantes e Gal Costa / Créditos: Divulgação

Ou seja, entre 1969 e 1976, muitas coisas já haviam mudado. As ideias dos tropicalistas haviam sido superadas, uma vez que o regime militar havia avançado e os anos de chumbo ainda eram recentes. No fim da canção, ele retoma esta ideia dizendo que:

Mas sei que nada é divino
Nada, nada é maravilhoso

Mais uma referência a Caetano, desta vez à música É Proibido Proibir, de 1968, aparece em outra estrofe, que também reflete o clima de medo instaurado no Brasil:

Mas sei que tudo é proibido
Aliás, eu queria dizer que tudo é permitido
Até beijar você no escuro do cinema
Quando ninguém nos vê

Caetano Veloso
Caetano Veloso / Créditos: Divulgação

Desiludido com os rumos do país, Belchior escreve sobre como não poderia deixar de se posicionar naquele momento, escrevendo canções fáceis e de apelo popular:

Não me peça que eu lhe faça uma canção como se deve
Correta, branca, suave, muito limpa, muito leve
Sons, palavras, são navalhas
E eu não posso cantar como convém
Sem querer ferir ninguém

Ele mostra ainda estar consciente de que a sua arte nunca conseguirá captar objetivamente a realidade que era muito pior do que uma canção poderia transmitir.

Mas não se preocupe, meu amigo
Com os horrores que eu lhe digo
Isto é somente uma canção
A vida realmente é diferente
Quer dizer, ao vivo é muito pior

Consciente do que havia acontecido a inúmeros artistas que questionaram ditaduras na América Latina, Belchior escreve ainda um trecho desafiador, demonstrando estar pronto para o que der e vier:

Mas, se depois de cantar, você ainda quiser me atirar
Mate-me logo, à tarde, às três
Que à noite eu tenho um compromisso e não posso faltar
Por causa de vocês

Conflito entre o Pessoal do Ceará e os tropicalistas

O Pessoal do Ceará foi um grupo formado nos anos 70 por artistas como Belchior, Fagner, Ednardo, entre outros. Como costuma ser comum em novos movimentos artísticos, eles se opunham ao gênero musical predominante da época.

Pessoal do Ceará
Pessoal do Ceará / Créditos: Divulgação

O movimento batia de frente com as ideias dos tropicalistas, consideradas velhas e atrasadas. Para eles, a música contemporânea vinda do Ceará era mais moderna, politizada e desafiadora, representando uma renovação.

No entanto, ainda que Belchior tenha feito referências à obra de Caetano em suas músicas, dizer que havia inimizade entre os dois é exagero.

Caetano Veloso / Créditos: Divulgação

Crítica atrasada ao tropicalismo

Em 2001, Belchior falou sobre a citação ao cantor baiano em Apenas Um Rapaz Latino Americano, inclusive dizendo que sua crítica ao tropicalismo estava atrasada:

Considero Caetano um poeta estupendamente harmônico e lúcido. A questão que aparece em Apenas Um Rapaz Latino Americano é complementar, por oposição. Traduzindo: há momentos em que você pode dizer que tudo é divino e maravilhoso, e há momentos em que você tem que dizer que nada é divino e maravilhoso. 

Aliás, do ponto de vista cronológico, essa música é bastante atrasada, pois o próprio Caetano já havia, em programas anteriores, falado que a tropicália estava morta, ou seja, que o divino e maravilhoso já haviam morrido. Portanto, se há uma crítica na música, ela está bastante atrasada.

Belchior / Créditos: Divulgação

Caetano se pronunciou sobre o assunto apenas depois da morte de Belchior, escrevendo que: Todas as citações a canções nossas que estavam em trechos de canções de Belchior me agradavam por estarem dentro de um timbre criativo sempre rico e instigante.

A trajetória de Belchior

Agora que você conferiu nossa análise de Apenas Um Rapaz Latino Americano, aproveita pra ler a biografia de Belchior e entender mais sobre a genialidade do cantor!

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