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Confira a análise de Roda Vida, música do Chico Buarque

Analisando letras · Por Renata Arruda

13 de Março de 2020, às 19:00

Quando se fala em músicas da ditadura é impossível não lembrar das canções de Chico Buarque.

Grande crítico do regime, o compositor é responsável por algumas das letras mais incríveis do período, abusando de metáforas para driblar a censura.

Chico Buarque
Créditos: Divulgação

Escrita para a peça de mesmo nome, Roda Viva é uma das músicas mais famosas de Chico Buarque e retrata um momento em que a liberdade de expressão era ameaçada no país.

Por isso, hoje resolvemos trazer uma análise completa da letra. Vem com a gente!

Análise da música Roda Viva, de Chico Buarque

Considerada pela revista Rolling Stone Brasil como uma das maiores músicas brasileiras de todos os tempos, Roda Viva foi lançada no final de 1967 no álbum Chico Buarque de Hollanda – Volume 3

Capa do álbum Chico Buarque de Hollanda Volume 3
Capa do álbum Chico Buarque de Hollanda Volume 3 / Créditos: Divulgação

Na época, o país vivia sob o regime militar, que cada vez mais dava sinais de endurecimento: um ano após o lançamento do disco, entrou em vigor o Ato Institucional nº 5, o AI-5, maior símbolo da repressão da ditadura.

É nesse clima de apreensão que a música foi escrita. Vamos analisar melhor a letra dela? 

Tem dias que a gente se sente
Como quem partiu ou morreu
A gente estancou de repente
Ou foi o mundo então que cresceu
A gente quer ter voz ativa
No nosso destino mandar
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega o destino pra lá

A música começa com um sentimento de impotência, demonstrando que algo não está bem na conjuntura social. Fomos nós que estancamos ou o mundo que cresceu demais e nós deixamos de acompanhar?

O que se tem é um impasse: queremos poder participar ativamente do mundo, decidir os rumos que tomaremos, individualmente ou enquanto sociedade. No entanto, chega a roda viva e desfaz essa ilusão, acaba com qualquer possibilidade.

Mas o que seria a roda-viva? De forma mais ampla, ela pode ser entendida como a roda do tempo, sobre o qual não temos nenhum controle.

No contexto da letra, a roda-viva é uma força associada à morte: ela aniquila, interrompe, deixa estagnado aquilo que estava em desenvolvimento.

Roda mundo, roda-gigante
Rodamoinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração

O refrão passa a ideia de desorientação: citando diferentes movimentos circulares em ordem decrescente (da imensa roda mundo chegamos até a roda pião), a impressão que se tem é a de que o cerco vai se fechando enquanto rodopiamos no mesmo lugar, sem ter para onde ir.

O tempo rodou num instante nas voltas do meu coração reforça essa sensação de espanto, do tempo que passa rápido e muda tudo, antes que possamos perceber.

A gente vai contra a corrente
Até não poder resistir
Na volta do barco é que sente
O quanto deixou de cumprir
Faz tempo que a gente cultiva
A mais linda roseira que há
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega a roseira pra lá

Novamente carregando um sentimento de desânimo, há um contraste entre o desejo de lutar ativamente, procurando nadar contra a corrente até perder as forças, e a impotência de não se poder fazer mais do que já se fez.

Aqui é um bom momento para lembrar o contexto político da época: no início da década de 1960, João Goulart assumiu a presidência do Brasil sob oposição de determinados setores militares.

João Goulart
Créditos: Divulgação

Com uma grave crise instaurada, que quase levou a uma guerra civil — situação solucionada com a adoção de um regime parlamentarista —, o governo de Jango foi conturbado e se desgastou rapidamente, acusado de querer implantar o comunismo.

Em março de 1964 foi realizada, em São Paulo, a Marcha Da Família Com Deus Pela Liberdade, que reuniu 500 mil pessoas contra o governo e a suposta ameaça comunista. Assim, abriu-se caminho para que ocorresse o golpe militar.

Voltando à letra, pode-se entender os versos A gente vai contra a corrente até não poder resistir. Na volta do barco é que sente o quanto deixou de cumprir como um misto de impotência e autocrítica sobre o quanto artistas e outros grupos ligados à esquerda poderiam ter feito mais pela democracia e tentado impedir que o regime militar conseguisse tanto apoio popular.

Essa interpretação é reforçada com a menção à roseira, na mesma estrofe, uma vez que a rosa vermelha foi adotada como símbolo do socialismo

Rosa vermalha simbolo do comunismo
Créditos: Divulgação

Em outra interpretação, mais ampla, a roseira pode ser entendida como o cultivo da arte e do que é belo e vivo.

A roda da saia, a mulata
Não quer mais rodar, não senhor
Não posso fazer serenata
A roda de samba acabou
A gente toma a iniciativa
Viola na rua, a cantar
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega a viola pra lá

Na estrofe acima, outras organizações em forma de roda são mencionadas, em contraste à roda-viva: a roda da saia, que passa a ideia de uma roda de dança, e as rodas de samba. 

Como sabemos, durante o regime militar as manifestações artísticas e intelectuais eram submetidas à censura e muitas foram proibidas e reprimidas de forma violenta. É sobre isso que fala esse trecho: não há mais dança, não há mais canto, não há mais alegria.

E mesmo que os artistas tentassem protestar ou resistir, organizando eventos e se manifestando com a viola na rua, a cantar, pouco adiantava: a roda-viva era implacável e oprimia qualquer um que tentasse se opor a ela.

O samba, a viola, a roseira
Um dia a fogueira queimou
Foi tudo ilusão passageira
Que a brisa primeira levou
No peito a saudade cativa
Faz força pro tempo parar
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega a saudade pra lá

O sentimento é de desesperança: fazendo uma referência à Inquisição, o letrista lamenta que a arte, a liberdade de expressão e a democracia tenham sido queimados na fogueira. Tudo não passou de uma ilusão que acabou muito rápido.

Resta agora só a saudade de dias que foram mais felizes. Mas até mesmo a saudade é oprimida pela roda-viva.

Roda mundo, roda-gigante
Rodamoinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração

No fim, o refrão acelerado transmite a ideia de gravidade e repetição. Como um cerco que vai se fechando até sufocar.

Roda Viva: a peça

A canção Roda Viva foi composta para a peça de teatro homônima, também escrita por Chico Buarque. O enredo não era político e falava sobre um artista manipulado e engolido pela indústria cultural.

Segundo o autor, a peça era uma paródia da situação que ele e outros artistas viviam na época:

Sob direção de Zé Celso, a peça estreou em 1968 e se tornou um símbolo de resistência contra a ditadura. Por isso, foi fortemente reprimida pelo regime, tendo seu cenário depredado e elenco espancado pelo Comando de Caça aos Comunistas (CCC) por duas vezes, até deixar de ser encenada.

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