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Fazer loginRincon Sapiência começou sua carreira no ano 2000 e se tornou conhecido por abordar questões sociais em suas letras, além de trazer diversas referências da música africana e jamaicana para o rap nacional.
Em 2017, o músico lançou seu primeiro álbum, Galanga Livre. O grande destaque do trabalho ficou por conta da faixa A Coisa Tá Preta, cuja letra tem a proposta de ressignificar a expressão racista para elevar a autoestima da comunidade negra.
Lançada em um período em que o debate racial ainda estava começando a se popularizar no Brasil, a música ganhou excelente repercussão e ainda colocou a galera para dançar. Quer saber mais? Então vem ler nossa análise do hit de Rincon Sapiência, A Coisa Tá Preta.
Antes de passarmos para a análise, vale saber o que Rincon Sapiência disse sobre o processo criativo de A Coisa Tá Preta. Segundo ele, o processo todo começou quando desenvolvi o instrumental, quando fiz os recortes com o berimbau e depois alguns arranjos eletrônicos em cima.
O rapper percebeu que a composição cairia bem com algo em volta da temática preta. No entanto, ele percebeu que deveria fugir do óbvio:
A musicalidade me pedia pra que não trabalhasse em cima do óbvio em se tratando do texto. Daí a ideia de ressignificação da expressão veio à tona, como um estalo, mas foi o instrumental que me desafiou a criar algo provocativo.
Vamos ver agora o que significa A Coisa Tá Preta?
Ei, pela minha raça não tem amor
Lava a boca pra falar da minha cor
Se eles quiser provar do sabor
Peça benção pra bater no tambor
Nunca age, nunca fala
Que a melanina vira bengala
Só porque fugimos da senzala
Querem dizer que nóiz é mó mala
Nos primeiros versos, Rincon Sapiência fala sobre o quanto o negro é menosprezado na sociedade. Ao mesmo tempo que muitos se apropriam da cultura e das religiões afro-brasileiras, também negam à pessoa negra o direito de exercer livremente o direito de ser quem é.
Segundo o rapper, o senhor de engenho dos dias de hoje são as pessoas que tentam aniquilar a autoestima das pessoas negras, as privando de usar seus cabelos naturais, de seguirem religiões de matriz africana e sentir orgulho da estética do povo preto.
Nos últimos versos, o autor faz um jogo de palavras em referência ao modo como, historicamente, os negros eram vistos como objetos; mercadorias a serem vendidas e compradas.
Abre alas, tamo passando
Polícia no pé, tão embaçando
Orgulho preto, manas e manos
Garfo no crespo, tamo se armando
De turbante ou bombeta
Vamo jogar, ganhar de lambreta
Problema deles, não se intrometa
Óia a coisa tá ficando preta
Nos versos seguintes, o compositor volta a sua atenção para a questão do orgulho negro. Na época, ainda era incomum que a questão racial fosse abordada na cultura pop brasileira do ponto de vista da autoestima.
Em entrevista, Rincon Sapiência comentou que: fatos como o genocídio da juventude preta e a manutenção de privilégios por parte da classe dominante são verdade, mas existe também um bom percentual de pretos ascendendo socialmente, ingressando nas universidades, quebrando padrões eurocêntricos de beleza, e acredito que isso deve ser ressaltado também.
Assim, a ideia da letra é fazer com que o ouvinte negro sinta-se empoderado ao assumir sua estética. O garfo no crespo, por exemplo, se refere ao pente garfo que é utilizado para colocar o penteado black power para cima — uma representação de poder.
Essa batida faz um bem, diz da onde vem
Corpo não para de mexer da até calor
É vitamina pra alma, melanina tem
E todos querem degustar desse bom sabor
Neste trecho, o autor exalta o valor da própria canção em si, cuja batida tem uma origem específica: a música negra. É mais uma celebração da beleza da cultura afro-brasileira e do quanto honrar as raízes faz bem para a alma.
Por isso, para o videoclipe da música, o rapper procurou focar em um clima de celebração. No vídeo, pessoas negras são vistas dançando com figurinos que remetem ao passado africano e também ao afrofuturismo, reforçando a mensagem de beleza e orgulho.
Vamo, vamo, vamo
Sem corpo mole, mole, mole
Tamo no corre, corre, corre
A coisa ta preta, preta
(Vam’bora!)
Aqui é um bom momento para falar mais sobre o título da canção. A expressão idiomática a coisa tá preta é popularmente utilizada há tantos anos que a maioria das pessoas não para para refletir sobre sua origem ou significado.
A expressão costuma ser usada como sinônimo de algo que está muito ruim. Segundo estudiosos, ela faz uma analogia às condições miseráveis dos africanos escravizados.
Dessa forma, Rincon Sapiência resolveu desconstruir o significado de a coisa tá preta e recontextualizou a frase para algo positivo. Se a coisa tá preta, então significa que ela tá boa.
Ritmo tribal no baile nóis ginga
Cada ancestral no tronco nóis vinga
Cada preto se sente Zumbi
E cada preta se sente a Nzinga
Pinga, quica, pinga, quica
Querendo uma brecha, toma bica
Misturou, mas a essência fica
Açúcar mascavo adocica
O trecho acima está repleto de referências à história negra. Logo nos primeiros versos, o rapper trabalha com a ideia de que o sucesso e a felicidade das pessoas negras é, por si só, uma vingança aos ancestrais que foram humilhados nos troncos.
Dessa forma, cada homem negro bem-sucedido sente-se como Zumbi dos Palmares e cada mulher como a rainha Nzinga, que reinou na região onde hoje é Angola. Ambos são símbolos de luta e resistência.
Além disso, a letra também menciona o processo de mestiçagem que, no Brasil, tinha o objetivo de extinguir a raça negra. No entanto, a essência do negro não se perdeu.
É o que significa o verso açúcar mascavo adocica. Durante a escravidão, o açúcar mascavo (escuro e empolado), era considerado de pior qualidade e direcionado às senzalas. A ideia aqui é mostrar que mesmo que tentem aniquilar o negro, ele prevalece.
Sangue de escravo não, pulei
Vou um pouco mais longe, sangue de rei
Na onda do stereo história, prolongo
Não rola mistério, sou Manicongo
Ei, DJ, ferve mil grau
Arame, cabaça, pedaço de pau
Que nem capoeira fechou, berimbau
A coisa tá preta, ó que legal
Seguindo o raciocínio do trecho anterior, o rapper rejeita a noção de sangue de escravo, que mais do que uma referência a um fato histórico, costuma ser um termo usado para diminuir a importância do povo preto, considerado de segunda classe.
Assim, a ideia é lembrar que pessoas escravizadas também foram reis e rainhas e não cumprem apenas o papel de servir à casa grande.
Se eu te falar que a coisa tá preta
A coisa tá boa, pode acreditar
Seu preconceito vai arrumar treta
Sai dessa garoa que é pra não moiá
Finalizando a letra, Rincon Sapiência deixa a mensagem de que a negritude é uma coisa boa e é motivo de orgulho. Ele chama a atenção de quem ainda está na garoa do preconceito, dando a ideia de que o negro não vai mais baixar a cabeça para o racismo.
Na análise acima, falamos rapidamente sobre o clipe da música A Coisa Tá Preta. Mas achamos que o vídeo também merecia um tópico próprio. Isso porque o vídeo traduz em imagens a ideia de celebração e orgulho que o rapper procurou transmitir em sua letra.
Gravado no distrito de Artur Alvim (Cohab 1), na zona leste de São Paulo, local onde Rincon Sapiência cresceu, o clipe reúne músicos, modelos, poetas e escritores que fazem parte da vida cultural da região.
O músico aparece sorridente, dançando em meio ao grupo que foi cuidadosamente selecionado para mostrar a diversidade da beleza negra. Sobre a produção, o rapper contou em entrevista que as ideias partiram de referências dele próprio, dizendo que:
Essa conversa entre passado e futuro se apresenta muito nos looks, estilos afro contemporâneos misturados a estilos mais tradicionais africanos, sem contar a maquiagem das garotas, que faz referências tribais.
Em 2020, as cantoras MC Rebecca e Elza Soares lançaram uma canção chamada A Coisa Tá Preta, que questiona o uso de expressões racistas em nossa língua e também exalta a negritude.
Pode-se dizer que a música é uma consequência de um movimento que começou com Rincon Sapiência e deixou um importante legado na música brasileira.
Gostou de ler nossa análise do hit A Coisa Tá Preta, de Rincon Sapiência? Então não deixe de conferir também as 20 melhores músicas do rap brasileiro. Aumenta o som e dá o play para curtir esse hinário!
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