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Análise: entenda a letra de Admirável Gado Novo, do Zé Ramalho

Analisando letras · Por Camila Fernandes

31 de Maio de 2022, às 12:00

Admirável Gado Novo se tornou um dos maiores sucessos de Zé Ramalho depois de ter entrado para a trilha sonora da novela Rei do Gado, em 1996. 

Abertura da novela Rei do Gado
Abertura da novela Rei do Gado / Créditos: Divulgação

A música foi tema do personagem Regino, um líder sem-terra apaixonado pelo campo que queria lutar por seus direitos e sempre se opôs à partidarização de seu movimento.

Vendo a corrupção sobrepor os interesses coletivos, Regino se sente mera massa de manobra. Apesar de não ter sido composta para a novela, a música combina perfeitamente com a história do personagem, já que é justamente sobre isso que ela fala.

Curioso pra entender melhor? Então dá o play no vídeo e vai acompanhando a nossa análise de Admirável Gado Novo!

Análise de Admirável Gado Novo: contexto e inspiração

Vamos começar pela história da música e o contexto em que ela foi escrita. O ano era 1979 e, aqui no Brasil, o último presidente da ditadura civil-militar, João Baptista Figueiredo, tinha acabado de assumir o poder.

Nas ruas, continuava a luta incansável pela liberdade de expressão, enquanto na arte misturavam-se os sentimentos de cansaço e de esperança. 

Músicas da Ditadura
Créditos: Divulgação

Ao escrever Admirável Gado Novo, Zé Ramalho usa não só desse contexto, mas também de toda a sua trajetória de dificuldades desde a infância no sertão da Paraíba.

A música é um misto de crítica à exploração do trabalho e à manipulação psicológica/intelectual. A principal inspiração é uma obra literária!

A referência a Admirável Mundo Novo

Como fica claro no título, a música faz referência ao livro Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley.

Esse livro traz uma história distópica, de ficção futurista, onde um governo central e autoritário se encarrega de manter a população “feliz” durante todo o tempo, evitando qualquer tipo de conflito ou desentendimento.

Capa do livro Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley
Capa do livro Admirável Mundo Novo / Créditos: Divulgação

Dentro da história, os seres humanos são divididos em castas, e uma delas — a mais baixa — é biologicamente fabricada para servir, fazer o trabalho pesado, sem reclamar e sem sequer ter qualquer consciência sobre o quão injusta é a situação.

Foi dessa história que veio a inspiração para o uso da palavra gado, afinal, é isso que o gado faz no campo: apenas obedece, ainda que inconscientemente.

Análise da letra de Admirável Gado Novo

Agora que você já entendeu de onde vieram as inspirações, é hora de interpretar a letra de Admirável Gado Novo!

Vocês que fazem parte dessa massa

Que passa nos projetos do futuro

É duro tanto ter que caminhar

E dar muito mais do que receber

Logo na primeira frase, já vemos que a intenção do compositor é ser direto. Ele não está falando sobre uma personagem, pelo contrário, faz um discurso direcionado ao ouvinte, e se posiciona como estando fora da massa.

A massa aqui vem daquela ideia de homogeneidade — ninguém gosta que a massa do bolo fique com os ingredientes visíveis, né? É preciso misturar ao ponto de tornar tudo perfeitamente igual.

No caso da música, a massa são os cidadãos, usados como construtores dos projetos que seus líderes têm para o futuro. Uma população usada como massa de manobra, como diria nosso amigo Regino em O Rei do Gado.

Nos dois últimos versos da primeira estrofe, a música fala sobre a dura realidade do trabalhador, que sempre ganha menos do que produz. Algumas análises afirmam que é uma referência ao conceito de mais-valia, de Karl Marx.

E ter que demonstrar sua coragem

À margem do que possa parecer

E ver que toda essa engrenagem

Já sente a ferrugem lhe comer

Apesar de todos os contratempos, o trabalhador precisa manter a postura e a coragem, já que é dela que depende seu sustento.

No entanto, esse sistema de trabalho, ou mesmo o funcionamento da economia, já demonstram defeitos que indicam um colapso próximo. Mais uma vez, pode-se entender o trecho como uma crítica ao capitalismo e à exploração da força de trabalho.

Ê, ô, ô, vida de gado

Povo marcado, ê!

Povo feliz!

Ê, ô, ô, vida de gado

Povo marcado, ê!

Povo feliz!

Nas fazendas, existe o hábito de marcar o gado com o ferrete, um instrumento de metal que é aquecido até ficar em brasa e depois é prensado contra o couro do animal.

Gado marcado
Gado marcado / Créditos: Divulgação

Assim, a queimadura com as iniciais do dono identifica o rebanho e organiza o domínio do fazendeiro. Depois desse processo, diz-se que aquele é um gado marcado.

O refrão da música faz referência a essa marcação, e também ao estado de felicidade forçada em Admirável Mundo Novo. Ou seja, estando devidamente manipulados dentro do controle dos líderes, reina no povo a falsa ideia de felicidade.

Lá fora faz um tempo confortável

A vigilância cuida do normal

Os automóveis ouvem a notícia

Os homens a publicam no jornal

Assim como no livro, a música fala da situação de normalidade enquanto tudo e todos estão sob controle. Na obra, existe uma pílula chamada soma que é dada aos cidadãos sempre que algum problema surge.

Ela garante que tudo fique sempre sob controle do governo. Enquanto a vigilância está lá fora, a vida segue dentro do esperado.

E correm através da madrugada

A única velhice que chegou

Demoram-se na beira da estrada

E passam a contar o que sobrou!

Com toda essa exploração constante no trabalho, não sobra tempo pra pensar. Ainda assim, existe uma vaga percepção de que algo está errado, que vem do saudosismo dos tempos em que as coisas eram melhores, e é assim que o autor demonstra que há esperança.

Ê, ô, ô, vida de gado

Povo marcado, ê!

Povo feliz!

Ê, ô, ô, vida de gado

Povo marcado, ê!

Povo feliz!

Ôôô, boi

O povo foge da ignorância

Apesar de viver tão perto dela

E sonham com melhores tempos idos

Contemplam essa vida numa cela

Mais uma vez, o cantor reforça que há esperança. Apesar de conviver com toda essa disciplinarização, que desestimula qualquer senso crítico, e de se ver preso na rotina, o povo ainda tem a capacidade de sonhar.

Esperam nova possibilidade

De verem esse mundo se acabar

A arca de Noé, o dirigível

Não voam, nem se pode flutuar

Não voam, nem se pode flutuar

Não voam, nem se pode flutuar

Aqui a música faz uma referência à passagem bíblica sobre a arca de Noé. Na história, Deus envia um grande dilúvio que destrói o mundo por completo, deixando intacta apenas a arca e seus integrantes, responsáveis por começar um mundo totalmente novo.

Nesse sentido, a música nos diz que o que mantém viva a esperança é a ideia de que esse mundo pode acabar logo, de que haverá um novo recomeço, talvez uma nova forma de sociedade. Mas, como? Se a arca não pode flutuar, e o dirigível não consegue voar…

Ê, ô, ô, vida de gado

Povo marcado, ê!

Povo feliz!

Ê, ô, ô, vida de gado

Povo marcado, ê!

Povo feliz!

Ôôô, boi

O cantor finaliza a música com o refrão, e com o mesmo chamado que aparece no começo. Ôôô, boi, é como se fosse o peão chamando a atenção do gado.

Zé Ramalho: cantor, compositor, poeta e cordelista

Zé Ramalho é definitivamente um poeta: antes de compor música, o cantor escrevia folhetos de cordel!

Não é à toa que a obra dele é cheia de letras de tirar o fôlego, como essa que você acabou de ler. Gostou da análise de Admirável Gado Novo? Que tal conhecer mais composições do Zé Ramalho? Vem entender a letra da música Chão de Giz!

Significado da música Chão de Giz, de Zé Ramalho